segunda-feira, 18 de março de 2013

Já nos viram!-2 ou O QUE SE FALA E O QUE SE QUER DIZER

Enviada por: Irene Santos, fotógrafa
Cena de rua . Debret, seculo XIX
Na sexta feira passada, dia 15/3/2013 ,  em sessão    fechada para convidados, foi exibido na Casa de Cultura Mário Quintana,     um documentário (¹) que, segundo  seu diretor/produtor, contaria a história da Liga da Canela Preta (²).Mesmo tendo recebido convite, não tive estômago para ir à estréia.
Mas minha amiga Cris, compareceu ao evento e relatou:
...Ao chegar à Sala, pouquíssimas pessoas e na maioria não negras. Estranhei pois, se fala da Liga, imaginei que estivesse presente pelo menos o pessoal que participa dos torneios que acontecem anualmente, se nao me engano. As únicas negras eram eu, sozinha, e uma moça que estava acompanhando um rapaz não negro.O diretor na abertura da sessão, falou da importância de mostrar os "problemas do negro" e disse que este curta faz parte de uma trilogia que irá "oportunizar aos afrodescendentes se verem" e ainda "passar conhecimento para os afros".
Comentário do comentário:
Pois é, Cris. Mesmo antes de mostrar sua obra, o diretor já derrapou na explicação.
Primeiro:  racismo e discriminação, não são problemas dos negros, são a vergonha de toda a nação, de todos os brasileiros  sejam quais forem suas cores ou etnias. Tão abjeto quanto ser discriminado é discriminar.
Segundo: nenhum de nós, afrobrasileiros, vai se ver naquele filme. Tudo o que queremos é fugir dos estereótipos do negro fujão, humilhado, acorrentado e sem saída.
Terceiro:  o  filme é produzido utilizando a "técnica tão moderna" de copiar e colar usando pesquisas alheias  e imagens colocadas totalmente fora do contexto em que foram originalmente apresentadas. Isso gera a total distorção da informação  que é passada adiante.

Cris ainda observa:
Foi horrível! Pensei no quanto me sentiria culpada se tivesse levado meu filho. Não fiquei revoltada, fiquei irritada com ignorância dos criadores do filme e principalmente pela falta de referências positivas, que hoje são tantas...  
...são muitas incoerências que não valem a pena discutir, enfim, ao final daquele filme que mais parecia um filme de terror, daqueles que te deixam com medo, o tal diretor esperava os convidados para cumprimentar.  Estranhamente quando chegou minha vez ele se virou e nem me olhou; pensei, vou esperar mais alguns minutos e perguntar a algumas pessoas sobre o que acharam do filme, e o que ouço é o seguinte : muito bom, o "cineasta" está de parabéns... 
 Outro comentário do comentário:

Corroborando a sensação da Cris de estar assistindo a um filme de terror , ainda há a declaração do cineasta à imprensa:
"– Depois, vai circular em escolas, entidades sociais e cinematecas.
Esse é o destino dele (o filme)"
De uns tempos para cá, mais precisamente desde 2003, quando se tornou  obrigatório o ensino da História e da Cultura Afro-Brasileira(³) no ensino fundamental,vem se formando um time de interessados em ajudar  a população negra a revisitar sua história. Na maior parte das vezes o que importa aos produtores é o acesso ao patrocínio e não ao patrimônio (cultural). Os produtos resultantes, criados a toque de caixa e  baseados em pesquisas ultrapassadas  só vêm  reforçar  os mesmos preconceitos e clichês vigentes desde o  século XIX. O filme de terror prossegue ao  serem (os produtos)  distribuidos às toneladas e ofertados às escolas, entidades sociais e até aos desavisados que estiverem passando por perto.

Como no desenho de Debret lá em cima, onde o negro protege da chuva o fidalgo que vai deixar sua  "obra"  sujando a rua, certos produtores culturais quando declaram estar ajudando a divulgar a cultura e/ou a história dos afrobrasileiros, na verdade estão é fazendo xixi no nosso patrimônio cultural.

 SAIBA MAIS:
(¹) -lançamento do filme
(²) - história da Liga da Canela Preta
(³) - lei 10679/3

Um comentário:

  1. Pois é Irene, agora tenho percebido que esses tais profissionais "cult" estão cada vez mais achando "interessante" os assuntos que se remetem à diversidade, mas o que tem preocupado-me mesmo são as "ações" que eles idealizam e acreditam que são importantes "para" os negros, exemplo disso é a apropriação da memória do povo negro, que parece estar virando uma febre entre/para eles, descobriram o nosso tesouro, e o quanto isso se conecta e se relaciona com o povo negro que é mais da metade da população do país. Agora querem nos "conhecer" e usar até nossas lembranças, nos tirando até o protagonismo de nossos criações, que sorrateiramente e infelizmente até algumas pessoas da academia tem feito isso, novamente querem e estão tentando nos tornar objetos, e ainda dizer o que é bom para nós. Observando o que fazemos e como fazemos vi o quanto nossas formas de vida têm simbolos, possui significados ressignificados por nós, a riqueza de nossas experiências e vivências é tão recheada que tema não falta para nossas artes. Neste sentido, o alerta "cuidado que já nos viram", faz com que reflitamos e não deixemos qualquer um falar, escrever, citar, apresentar etc., por nós, pois só quem tem a cor conhece a dor.

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