Pedro Cunha. |
Seu Pedro Cunha, perto dos oitenta anos, tem a memória afiada como todo griot que se preze.Lembra não só dos fatos como das razões que deram origem aos fatos e das consequencias geradas pelos fatos. Tudo coisa de antigamente.
Por exemplo, ele conta que seu pai, Isaque,no início do século XX integrava uma confraria que cuidava da colocação dos negros no mercado de trabalho. Alfaiates, costureiras, marceneiros, cozinheiras,carpinteiros. Seu Pedro salienta que toda vez que os pretos se associavam pensavam no bem comum, em se auxiliarem mutuamente.
"A (praça da) Harmonia era onde os negros se reuniam, lá embaixo, lá no cais do porto". Lá, o grupo de seu pai Isaque, ficava esperando a chegada dos novos trabalhadores vindos do interior do estado.
Praça da Harmonia vista do Guaiba, Irmãos Ferrari |
O sentimento de fraternidade se aguçava em certas ocasiões. Seu Pedro conta que em 1941, no mês de maio choveu 40 dias sem parar. Quando parou a chuva, começou o vento. O Riacho transbordou e a água entrava nas casas próximas "para mais de metro" janela adentro. Sua família, pais e três crianças, teve de sair de casa. Foram abrigados na Colônia Africana, na casa de "irmãos pretos", onde ficaram por mais de mês.
A professora Petronilha Gonçalves e Silva também fala das suas lembranças da Colônia Africana (1) já nos anos 1950 :
"Compartilhar progressos e benefícios era quase uma norma. Assim, quando o vizinho Joaquim, funcionário do Tesouro do Estado, comprou o primeiro rádio das imediações de sua casa, muitos compartilharam. Ao final do dia, ao chegar em casa, punha o rádio na janela da frente em alto volume e a vizinhança se aproximava para ouvir notícias, músicas, histórias seriadas. Os adultos se ocupavam de todas as crianças da vizinhança, chamando a atenção, orientando, acarinhando. O Seu Miguel Ribeiro, na Páscoa, escondia moedas pelo pátio e jardim, depois chamava a criançada, a começar por suas filhas, sentava-se na cadeira de balanço e ficava observando e se divertindo com a correria atrás das moedas. Aplaudia, a cada moeda encontrada, e incentivava para que continuassem até encontrar a última. Todos encontravam alguma moeda."
Muito mais gente, inúmeros elementos desviando a atenção...é natural, assim, que o velho sentimento de coesão do povo negro tenha enfraquecido. Seu Pedro Cunha protesta revoltado:
"A minha ira é que essas coisas todas, essas coisas negras foram sendo destruídas pelos próprios negros".
28.7.2013, no Brique da Redenção |
Talvez não destruídas, Seu Pedro, mas esquecidas pela falta de prática. Pela falta de tempo de ir a uma reunião, pela falta de informação, apesar de vivermos na época da comunicação virtual exacerbada. Pela falta de conhecimento da própria história. Tratado como estrangeiro em sua própria pátria, o povo preto, resignado em grande parte, ainda aceita a invisibilidade que a sociedade dominante lhe atribui...A ira de Seu Pedro Cunha tem razão de ser.
Mas fique tranquilo, Seu Pedro, parece que finalmente as coisas começam a mudar. Não fosse isso, nesse domingo ensolarado de 28 de julho, não se teria visto o que se viu.
Marguerite Silva Santos - fotos Irene Santos |
Em pleno Brique da Redenção, reduto dos descolados de Porto Alegre, irrompeu o protesto em forma de música e cantoria. Liderado pelo Coletivo Negro de Artistas e Produtores do RS, pelo grupo Caixa Preta, pela cantora lírica Marguerite Silva Santos, pelo ator Kdoo Guerreiro, pelo diretor de teatro Jessé Oliveira, pelo ator e compositor Alvaro Rosa Costa, um grupo - nem tão pequeno como se poderia temer mas nem tão grande como seria de se querer - protagonizou um ato pela valorização das raízes da nossa cultura de negros. Quem estava passando parou e muitas caras amarradas se abriram em sorriso; houve quem aderiu cantando no lugar,houve quem além de cantar, dançou pela justa causa. O refrão e a percussão tomaram conta do Brique.
Foi um ato público provando que pode-se protestar com arte. Outros virão. Nossa voz tem poder é o refrão.
Só que tem de vir todo mundo... e cantar junto.
1) Texto de apresentação do livro Colonos e Quilombolas-memória
fotográfica das colônias africanas de Porto Alegre - 2010 - Irene Santos, Cidinha da
Silva,Vera Daisy Barcelos, Dorvalina Fialho, Zoravia Bettiol.
2) A frase "Leal
e Valerosa Cidade de Porto Alegre" é o
título que D. Pedro II do Brasil, em 1841, outorgou a Porto Alegre pela sua constância
e fidelidade ao trono brasileiro durante a Revolução Farroupilha.
Nina Fola Cara Irene! Obrigada pela nota!
ResponderExcluirEu e minha irmã Josi estamos muito lisonjeadas pela matéria.
Mas gostaria de fazer um depoimento:
Pedro Cunha, viveu sua juventude e maturidade numa época em que não se teorizava o racismo e sim se sentia e se vivia e, quando ainda tinha condições de depor,e o fez para o Livro Colonos e Quilombolas, fazia esta fala quase de censo comum sobre o nosso poder de autodestruição que ainda impera sobre nós e nossos irmãos. Mas o que eu quero contribuir é que o racismo é o grande motivador desta ordem e que atualmente estamos tendo a total consciência sobre o que Lélia Gonzales falava sobre negritude ou que muitos falam sobre o que UBUNTU. Particularmente acredito que novos acontecimentos estão nos dando a noção da realidade e que com estas oportunidades podemos contrapor à esta lógica racista e declarar que estamos vencendo, paulatinamente, ou enfrentado de forma diversa, este grande algoz, através destas grandes ferramentas que é a noção de negritude e o espírito UBUNTU.
Que a luta nossa seja sempre forte e adiante, e nós sejamos guiados pelos nossos antepassados e ancestrais para que sempre possamos crescer na luta! Asé e Beijos!
Parabéns, Irene Santos, por citar o seu Pedro Cunha. Também tive a oportunidade de conhecê-lo e fazer mais de duas horas de gravação. Foi uma experiência riquíssima. Seu Pedro Cunha é uma pessoa especial.
ResponderExcluirJeanice Ramos