por Vera Lopes, atriz e avó de Aluiatan e Tainá
“o velho é o dono do tempo não para nunca de andar[...]
a volta do mundo é grandepra quem nem bem começou
a gente faz o caminho que o velho já caminhou[...]
quem tem ajuda do velho já vira caminhador[...]”
O
Mais Velho
Ouvi
pela primeira vez esse canto – “O Mais Velho” – na bela voz de Glória Bomfim,
me foi enviado por uma querida e talentosa amiga, Pâmela Amaro, atriz,
instrumentista, compositora, cantora, também dona de uma bela voz.
Mas
escrevo, não só para dizer das vozes belas de nossas negras mulheres de tantos
talentos que com negras histórias de vida tão semelhantes, se confundem com as
histórias de tantas outras talentosas negras, quase anônimas ou anônimas, que
com muito, muito esforço, uma ou outra consegue romper o “silêncio
ensurdecedor” – quase enlouquecedor – que as coloca em um lugar de pouco
acesso, acessado por alguns de nós, na maioria, com negras histórias de vida semelhante
ou igual à delas.
Minha
negra história não é diferente, mesmo tendo chegado muito depois dos meus, das
minhas, que me antecederam neste lado do oceano, estou nesse mesmo lugar:
talentosa e, dona de bela voz, acessada por iguais, na grande maioria,
“circundantes” meus. Porém para além desse lugar, vivo/transito em outros
muitos lugares, ocupo outras muitas funções e assumo com o maior prazer à
condição de mãe/avó.
Contudo,
a de avó me é mais cara. Em especial nesse momento, em que estou perfazendo “o
caminho que a ‘velha’ já caminhou”. Minha avó, minha pequena/grande avó, me fez
“caminhadora” e por muito tempo acompanhou minha jornada. Do meu nascer até a
orfandade, aos cinco anos: de lado, morava na casa ao lado da casa de meus
pais. Da orfandade ao início da vida adulta: de junto, passei a viver em sua
casa. Quando adulta: de dentro, ocupou definitivamente seu lugar no meu viver,
minha referência maior, minha lembrança melhor do que é ter uma avó, ser neta.
Já
há alguns anos ficava ali, na sua cadeira, no seu mundo, ao meu/nosso alcance,
saudável nos seus 97 anos, parecia que ali ficaria ainda por muito, muito
tempo, desafiando o tempo, para sempre. Porém, assim não foi, ela que resistiu
a tantas agruras, que nos ensinou a resistir e enfrentar a violência do racismo
que desde sempre nos acompanha, a sermos honestos, a defendermos nossas
conquistas, não resistiu a uma mudança brusca de temperatura. Uma onda de calor
ainda não experimentada no Sul do Brasil lhe causou uma pneumonia dupla, em
poucos dias a doença foi gradativamente lhe roubando a possibilidade de
respirar, até parar por completo, literalmente em meus braços.
Quando
minha avó parou, estávamos eu e Analice, sua dedicada cuidadora vigiando seu
respirar, choramos muito, ainda choro, escrevo e choro, leio e choro, estou
“escrevivendo” a transição, de neta a avó. É, não sou mais a neta, lugar
confortável de ser e estar. Ainda neta, podia brincalhonamente dizer: “sou vó”,
agora a condição de neta está na minha memória, e é, neste momento, a minha
mais doce lembrança, neta de minha avó Nonóca.
Já
a minha condição de “vó” hoje me coloca em um outro lugar, o qual bem
identificou meu neto outro dia quando alguém elogiou suas tranças:
- que linda suas tranças, Aluiatan,
quem fez?
- foi minha avó
- ela trança muito bem, ficaram lindas
-
é porque ela é velha, né vovó, você é velha?
Sim,
meu neto, respondi com um imenso e reconfortante sorriso, sou velha, sou sua
avó.
Salvador,
13 de março de 2014
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