sábado, 15 de março de 2014

SOU VELHA, SOU SUA AVÓ...

por Vera Lopes, atriz e avó de Aluiatan e Tainá


o velho é o dono do tempo não para nunca de andar[...]
a volta do mundo é grandepra quem nem bem começou
a gente faz o caminho que o velho já caminhou[...]
quem tem ajuda do velho já vira caminhador[...]” 
O Mais Velho


Ouvi pela primeira vez esse canto – “O Mais Velho” – na bela voz de Glória Bomfim, me foi enviado por uma querida e talentosa amiga, Pâmela Amaro, atriz, instrumentista, compositora, cantora, também dona de uma bela voz. 
Mas escrevo, não só para dizer das vozes belas de nossas negras mulheres de tantos talentos que com negras histórias de vida tão semelhantes, se confundem com as histórias de tantas outras talentosas negras, quase anônimas ou anônimas, que com muito, muito esforço, uma ou outra consegue romper o “silêncio ensurdecedor” – quase enlouquecedor – que as coloca em um lugar de pouco acesso, acessado por alguns de nós, na maioria, com negras histórias de vida semelhante ou igual à delas.
Minha negra história não é diferente, mesmo tendo chegado muito depois dos meus, das minhas, que me antecederam neste lado do oceano, estou nesse mesmo lugar: talentosa e, dona de bela voz, acessada por iguais, na grande maioria, “circundantes” meus. Porém para além desse lugar, vivo/transito em outros muitos lugares, ocupo outras muitas funções e assumo com o maior prazer à condição de mãe/avó.
Contudo, a de avó me é mais cara. Em especial nesse momento, em que estou perfazendo “o caminho que a ‘velha’ já caminhou”. Minha avó, minha pequena/grande avó, me fez “caminhadora” e por muito tempo acompanhou minha jornada. Do meu nascer até a orfandade, aos cinco anos: de lado, morava na casa ao lado da casa de meus pais. Da orfandade ao início da vida adulta: de junto, passei a viver em sua casa. Quando adulta: de dentro, ocupou definitivamente seu lugar no meu viver, minha referência maior, minha lembrança melhor do que é ter uma avó, ser neta.
Já há alguns anos ficava ali, na sua cadeira, no seu mundo, ao meu/nosso alcance, saudável nos seus 97 anos, parecia que ali ficaria ainda por muito, muito tempo, desafiando o tempo, para sempre. Porém, assim não foi, ela que resistiu a tantas agruras, que nos ensinou a resistir e enfrentar a violência do racismo que desde sempre nos acompanha, a sermos honestos, a defendermos nossas conquistas, não resistiu a uma mudança brusca de temperatura. Uma onda de calor ainda não experimentada no Sul do Brasil lhe causou uma pneumonia dupla, em poucos dias a doença foi gradativamente lhe roubando a possibilidade de respirar, até parar por completo, literalmente em meus braços.
Quando minha avó parou, estávamos eu e Analice, sua dedicada cuidadora vigiando seu respirar, choramos muito, ainda choro, escrevo e choro, leio e choro, estou “escrevivendo” a transição, de neta a avó. É, não sou mais a neta, lugar confortável de ser e estar. Ainda neta, podia brincalhonamente dizer: “sou vó”, agora a condição de neta está na minha memória, e é, neste momento, a minha mais doce lembrança, neta de minha avó Nonóca.

Já a minha condição de “vó” hoje me coloca em um outro lugar, o qual bem identificou meu neto outro dia quando alguém elogiou suas tranças:
- que linda suas tranças, Aluiatan, quem fez?
- foi minha avó
- ela trança muito bem, ficaram lindas
- é porque ela é velha, né vovó, você é velha?
Sim, meu neto, respondi com um imenso e reconfortante sorriso, sou velha, sou sua avó. 

Salvador, 13 de março de 2014
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